quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Voz e vida ao poeta: reedição de O Povo em homenagem a Jáder de Carvalho.


No dia 25 de abril do ano 2000, o Jornal O Povo presenteou-nos, leitores ávidos de Jáder, com a reedição de uma entrevista feita pelo Jornalista Fenelon de Almeida ao nosso escritor no ano de 1985. Deu-nos, assim, mais uma vez, a oportunidade de “escutar” uma das vozes mais brilhantes que o Ceará já teve. Homem de mil faces, nesta entrevista, dividida entre perguntas ao poeta, ao romancista, ao jornalista, ao sociólogo e até ao advogado e intitulada de “Povo foi comemorar a queda aparente da ditadura”, Jáder mostra-se. E, para nosso deleite, é como se este homem estivesse vivo, tão vivas eram suas ideias, tão vivo era tudo que dizia. Deste modo, melhores palavras introdutórias não poderiam existir do que as utilizadas por Fenelon de Almeida. Embarquemos, portanto, nessa volta ao passado que tinha Jáder em seus dias:

Imagem da publicação no
 jornal O Povo em 25 de abril de 2000.

“Povo foi comemorar a queda aparente da ditadura"

Entrevista a Fenelon de Almeida

Quando sentimos escassear, no Ceará, os verdadeiros jornalistas, aqueles que exercem com decoro e independência a sua profissão, desincumbindo-se da missão de, informando, formar ou transformar a opinião pública, aqui estamos para falar de Jáder de Carvalho, o maior jornalista cearense em nosso tempo. Dia 29 último, ele viu transcorrer o seu 83º aniversário natalício. E continua a mesma fortaleza inexpugnável de lucidez e destemor.

Falar de Jáder jornalista é também falar do poeta e do romancista e do professor. Nele estão intimamente associadas essas quatro facetas de sua atividade intelectual, integradas num só biotipo. O poeta, o professor e o jornalista estão xifopagamente interligados, e são indissociáveis. Tem sido assim, através dos anos. O pensamento diretor da obra de Jáder de Carvalho é sempre o mesmo, desde quando ele faz versos, dá aulas de História e emprega a sua pena de grande jornalista. Em qualquer um desses momentos, disponta o sociólogo. E um só pensamento avulta em sua mente: a libertação social, econômica e cultural do povo nordestino. Povo é o universo em que se situa tudo quanto ele há feito ou deixou de fazer.

Falar desse mundo é o que aqui se propõe. Entretanto, não nos atrevemos a abordá-lo diretamente, com palavras nossas. Só serviriam para desfigurar-lhe a imagem de grande mestre das letras cearenses. Vamos tentar delinear os traços de sua individualidade, valendo-nos de suas próprias palavras. Queremos deixar a ele mesmo a tarefa de revelar-se aos das novas gerações. A nossa participação vai restringir-se à escolha dos enfoques. A revelação será sua. Ninguém melhor do que Jáder de Carvalho para falar de Jáder de Carvalho.

Poeta, professor, jornalista... Qual dos três nasceu primeiro?

O indivíduo Jáder de Carvalho nasceu na Serra do Estêvão (Quixadá), a 29 de dezembro de 1901. O jornalista em 1917, na cidade de Iguatu. Deste modo: meu pai, Francisco Adolfo Carvalho, arrendou uma tipografia ociosa, de propriedade do farmacêutico Arnaud. Nela, compus e imprimi um pequeno semanário de letras, todo escrito por mim, exceto os infalíveis sonetos de Bilac. Meu genitor mantinha um bem freqüentado Externato. No mesmo ano de 17, comecei a ensinar. Por sinal, Português. O livro adotado para análise gramatical e lógica era o "Iracema", de Alencar, ou seja, o maior poema do Brasil, em todos os tempos. O poeta veio ao mundo em 1919, dois anos depois. Eu estudava no Liceu do Ceará. Como aprendi a arte gráfica, para compor e imprimir meu semanário, acima citado? Assim: meu pai, em 1911, era sócio da "American Typography", localizada na Praça do Ferreira, lado do sol. Meu professor foi o então tipógrafo Gastão Justa, que morreu acadêmico de letras. Fui, com muita saudade, o orador da Academia Cearense no seu enterro, no São João Batista. Pouca gente. Muitas lágrimas da família. Poeta, jornalista e professor... Todos vivos, em companhia do sociólogo. O advogado, esse, para alegria minha, está bem morto. Enterrou-se numa aposentadoria.

Você escreveu um romance intitulado "A Criança Vive", no qual consegue provar que o espírito de criança não morre nunca no ser humano, perdurando no homem adulto. Pode falar de sua infância?

Quase não tive infância. Amadureci muito cedo. Minha mãe (Coitadinha! Morreu tão moça!) foi quem me viu sempre menino.

 Qual foi a maior alegria da sua vida?

Ficou de vir. Mas ainda não chegou.

E o que mais o entristeceu?

 Não posso, não devo falar. Dói. Nunca deixará de doer.

Fez alguma coisa da qual se tenha arrependido?

Fiz. Obedeci à Margarida (sua mulher), formando-me em Direito. Meu lugar era na Psicanálise. Fui, no Ceará, o primeiro a ler Freud. Todos os anos, atualizo-me na Psicologia Profunda. No Brasil, dentro dela, tive um amigo e mestre: Gastão Pereira da Silva. Mais velho do que eu, acaba de publicar, em seis volumes, uma obra que não pode deixar de ser lida: "Psicologia da Vida Moderna". Nessa obra, vem o retrato de Freud em corpo inteiro.

Gostaria de pedir desculpa ou perdão a alguém?

Homem-homem não pede perdão a ninguém. Desculpa? Deve pedir. Depois de fechar o "Diário do Povo", procurei, com humildade, todos aqueles a quem ofendi com muita coragem, mas injustamente. E fui desculpado, com muita alegria por todas as vítimas, da minha cabeça quente. Cabeça pegando fogo, sem condições de julgar sem pecado. Cabeça, enfim, de quem nasce com destino de fazer oposição a todos e a tudo.

Pode falar também da Imprensa cearense, como um todo, nos dias atuais? Os jornais de hoje são melhores ou piores do que os de antigamente?

De Getúlio até hoje - senão com muito perigo - não pôde existir uma imprensa de verdade, quanto ao posicionamento político ou ideológico dos jornais. Num regime de brutalidade e corrupções, somente pequenos jornais, quase sem leitores, circulam às escondidas e sempre com perigo de apreensão. Em Fortaleza, não se deve negar o progresso material da Imprensa de informação e crítica social e política. Jornais do Ceará já podem ser lidos nas metrópoles do Brasil. Por falar em imprensa: não quero esconder o que os cearenses de hoje ignoram. O jornal mais bem escrito e de feição mais artística foi o "Jornal do Comércio", fundado nesta Capital em 1924. Diretor: Raimundo do Monte Arrais, renomado constitucionalista. Redator-chefe: Elcias Lopes, uma das grandes figuras da imprensa do Ceará, hoje totalmente esquecido. Redatores principais: Clóvis Monteiro, filólogo, anos depois nome nacional, e Manuel Monteiro, excelente cronista barroco. Redatores auxiliares: eu e o futuro cunhado Francisco Sabóia, grande estudioso da língua portuguesa, elogiado, sem favor, por Mário Barreto.


LIMITAÇÕES E IMPOSIÇÕES

O Nordeste, como Polígono das Secas, ainda o preocupa?

Nordeste e Polígono não se confundem. As secas ultrapassaram, primeiro, as fronteiras nordestinas e, logo depois, as do Polígono. Hoje, para mim, existe o Brasil semi-árido, reino macabro dos grandes verões periódicos, que vai do Leste maranhense ao Norte de Minas, abrangendo, total ou parcialmente, cerca de 10 Estados. Assim, as secas já não caracterizam apenas o Nordeste e o Polígono, mas o Brasil semi-árido, de vasta extensão territorial.

A seu ver, há uma saída para este subdesenvolvimento crônico? Qual?

Com a presença do FMI dentro do Governo da República - presença marcada por limitações e imposições que ferem frontalmente o poder e a soberania nacional - não vejo saída alguma. Falta-nos a bravura de Cuba e da Nicarágua para enfrentar (ou vencer) o imperialismo norte-americano. Tremo pelo destino deste País, que as multinacionais não pagam imposto, em detrimento das empresas brasileiras, e tecnocratas indesejáveis, sob o comando de militares reformados, enriquecem, assombrosamente, da noite para o dia, sob os olhos conformados do povo. Acredito que o Brasil alcançará, em período não muito longo (se não for logicamente desmembrado), um lugar que o espera entre as potências mundiais. Sem escravidão de qualquer tipo, poderíamos planejar e construir.

Por que, até hoje, não se encorajou essa mensagem?

Fácil de responder, embora o vento leve minhas palavras, enquanto passa ao longo as mentiras pagas e desonestas de Delfim Neto. Apesar de tudo, em relação à parte deste País, esquematizei o livro "Brasil semi-árido". Sugestão para a solução dos problemas: antigos e novos. Nesse modesto ensaio, passo longe do resto do Brasil. E passo por isto: num regime militar, reforçado por sua incompetência e inegável conspiração, livros, opiniões, conselhos de paisanos jamais seriam aceitos. Nada espero de Tancredo Neves. O País, às mãos de militares inativos e economistas monetaristas, já não passa de doente grave, anestesiado, na mesa de operações, à espera de cirurgia. O pior é isto: não existem cirurgiões de extirpação do câncer, principalmente quando tomou conta da carne, do sangue e - quem sabe? - da alma.

A Sudene esvaziou-se, morreu mesmo, ainda será a solução para o Nordeste?

Como viu, já não aceito a discriminação pensada e humilhante: Nordeste das secas. Existe sim, as secas do Brasil semi-árido. Para que valeria uma Sudene destinada aos problemas climáticos e econômicos de uma área imensa, constituída de uma dezena de Estados?

Que nos diz da bandeira empunhada pelo jornalista e professor Paulo Bonavides?

A América Espanhola continuou esposada depois de dividida em países. O Brasil, unido pela língua portuguesa e religião católica é, contudo, um país repartido em numerosas regiões naturais, com a suas características absolutamente indestrutíveis. Nada mais lógico do que imitar-se o exemplo da América hispânica, para acabar com esse patriotismo idiota de um Povo Uno porque nele se fala e se reza do mesmo modo. Eu - não tremo, ao dizê-lo - seria hoje feliz se pudesse dizer ou escrever: Jáder de Carvalho, cidadão da Confederação do Equador.

Bonavides sustenta que a autonomia das grandes regiões naturais do Brasil é "um dos remédios destinados a cicatrizar a ferida centralizadora e estatizante no organismo da Nação", concorda?

De modo absoluto. Um mesmo pensamento nasceu em cérebros diferentes, sem haver conversa entre duas cabeças. Não é de espantar que sempre existiu muita finidade entre o meu pensamento e o de Paulo Bonavides. Razão: nós estudamos muito e, no caso do problema brasileiro de que se trata desta entrevista, temos a coragem de pensar com independência, à luz da Geografia Humana e de outras ciências, dessa convocação a gente não pode prescindir.


O NORDESTE NA LITERATURA

Fazendo literatura, você chegou a filiar-se a algum movimento de renovação literária?

Filiei-me ao Modernismo de 22. Fiz uma poesia equilibrada, como a que se encontra ao longo da minha vida poética. Antecipei-me ao Modernismo de 45. Aliás, devo esclarecer que não estou ferindo as melindres de certa gente, dizendo-me modernista. Tenho provas.

Em que consistiu sua participação?

Publiquei "Canto Novo da Raça", em parceria com Sidney Neto, Franklin Nascimento e Mozart Firmeza (1927). Em 1930 estava nas livrarias meu "Terra de Ninguém". Antônio Girão Barroso, com muita honra para mim, coloca esse livro entre os dez maiores saídos do Movimento Modernista no Brasil.

 Como você se sente mais atual e atuante: como romancista ou como poeta? Por quê?

Sinto-me igualmente atuante e atual no romance e na poesia. No romance, contra a vontade dos que se dizem mestres. Na poesia, cabem os meus problemas de sempre: a dor dos oprimidos, honras aos povos e raças.

NATURALISMO SOCIAL

Você sempre disse ser um homem telúrico. Como se sente na vida urbana?

Renovo o meu telurismo com o livro "Terra Bárbara" em véspera de segunda edição acrescida dos sonetos nordestinos, espalhados em minha obra poética. Na cidade, sou um sozinho no meio da multidão. Ah, como me dói a ausência da fazendola "Lisboa", onde tanto conversava com as ovelhas!

Que fazer, para conter-se a poluição e tratar-se o meio ambiente? Solução técnica ou política?

Expulsar do Poder os dirigentes analfabetos. A Ecologia, no Ceará - já o disse alhures - é a mais recente descoberta da UFC. Desgraçadamente, ainda não funcionou, mesmo em Fortaleza, às barbas da sapiência oficializada. A Técnica e a Política não podem deixar de conviver, na preservação do meio ambiente. Por infelicidade, no Brasil, principalmente nos centros industriais, já existe a urgente necessidade de recriar-se o meio ambiente. O primitivo, esse o homem destruiu, aliás esquecido de si mesmo.

Por que não regressou ao sertão, depois da aposentadoria?

Porque me faltou dinheiro para comprar outra fazenda, outras vacas, outras cabras, outras ovelhas. A "Lisboa", eu a vendi, forçado pelo Banco do Nordeste, que somente agora descobriu o seu papel na economia do Semi-Árido, ou seja, a quase imensa região brasileira castigada pelas chamadas secas periódicas. Entre parêntese: nessa região, principalmente no Nordeste, as piores secas têm sido os governos - tanto o federal como os estaduais.

Qual, hoje, é o seu principal entretenimento? Gosta de ver televisão?

A televisão, no Brasil, perdeu o sentido cultural que deveria ter. Nela, a Roberta Close aparece com muito mais prestígio do que os grandes intelectuais, os grandes cientistas. Não falo em grandes políticos, por esta razão: no Brasil não existem políticos, no sentido científico da palavra, mas simples compradores de votos, apesar da imensa austeridade do Superior Tribunal Eleitoral, cujos juízes sempre leram a Constituição de cima para baixo ou de trás para diante. Para completar a resposta: esqueço-me, às vezes, no meu quarto de dormir, que é também escritório, gabinete de leitura e domicílio da máquina de escrever - esqueço-me da presença do televisor. Porque sempre gostei do sexo oposto, quando me sinto sem o calor feminino, compareço, pela televisão, ao programa "Essas Mulheres Maravilhosas", de J. Silvestre.

Como outros sociólogos brasileiros, você também acha que a televisão, com essa mania de enlatados estrangeiros e de transmissões em cadeias nacionais, se vai transformando em verdadeiro agente de "colonialismo cultural"? Estará contribuindo realmente para apagar da memória coletiva das populações regionais brasileiras os traços culturais genuinamente autóctones?

A cultura brasileira, em que Portugal, França, negros, índios e mestiços misturavam suas tradições, essa já foi expulsa do Brasil. Culpados principais, pelo poder do dinheiro: a "Rede Globo" e outras redes estrangeiras de menor relevo e, por isso mesmo, de menor perigo de poluição para a cultura brasileira - menina que não pôde crescer. Finalmente: o regional, no Brasil, afoga-se no "colonialismo estrangeiro". Assim, não teve tempo, ao menos, de tornar-se nacional.

Que deveríamos fazer para salvaguardar a nossa cultura regional dessa derrocada, livrando-a, em tempo, desses transplantes indesejáveis?

No Brasil, fôra mais fácil levantar pirâmides e esfinges do que levar a cultura brasileira ao seu verdadeiro destino. Afinal, para salvaguardar essa cultura, só vejo e encontro este caminho: substituir no Governo da República, no Governo dos Estados, no Congresso Nacional e nas Assembléias Legislativas, muitos dos seus atuais ocupantes. Os nossos dirigentes - falo com o devido respeito - até lembram, sob alguns aspectos, norte-americanos naturalizados brasileiros. Substituí-los por brasileiros natos, isto é, autênticos, sem o vício ou pecado de, espontaneamente, se deixarem levar por interesses pessoais e assumirem a condição de súditos de Reagan (Ronald Reagan, então presidente dos Estados Unidos) e seus antecessores, até à morte da influência inglesa no Brasil - eis o caminho certo.

 PSICOLOGIA E ESPIRITISMO

Sabemos que, ao lado da Literatura e da Sociologia, a Psicologia também o seduziu. Como tem passado até hoje o psiquiatra e psicanalista que você não chegou a ser?

Sem frustração. Faltou-me tempo para desesperar. O ano passado, matei saudades do que não fui, lendo "Psiquiatria Básica", grande livro de Gerardo da Frota Pinto. Leiam, os idosos (palavra para não ofender de sexagenários para cima), o capítulo 12 ("Velhice e Senectude"). Já é um consolo a gente se conhecer nas fronteiras do fim da vida.

Falemos agora do advogado. Vale a pena?

Para os que não escrevem contos, poemas, sociologia, artigos de jornal, vale.

Qual foi a injustiça que mais o magoou?

O meu afastamento do magistério por dez anos. Autor do crime: o governador Menezes Pimentel. Ingrato! Sempre fui desassombrado defensor dos negros, quer os do Brasil, quer os de países racistas, como os Estados Unidos e a África do Sul.

Na sua opinião, a vida tem uma finalidade?

Tinha: a de procriar, para a sobrevivência do homem. Hoje, não vale a pena fecundar ventres. O Apocalipse nuclear é o presente dos imperialismos para os nossos filhos. Amar, para ter filhos, é cavar sepulturas antecipadas.

Que espécie de vida espera encontrar após a morte física?

Como alma, ser dotado da quarta dimensão e, graças a ela, entrar numa casa fechada, sem necessidade de bater palmas ou pedir que abram a porta. Outra vantagem, segundo o Espiritismo: viajar com a rapidez do pensamento, sem utilizar qualquer meio de transporte e - o que seduz - não ter de pagar passagem. Falo assim por brincadeira. Espírito, eu continuaria na minha casa, entre livros com a marca das minhas mãos e dos meus olhos. Continuaria inimigo da rua, principalmente da rua de metrópole - sem silêncio, sem tréguas para uma conversa sobre Arte, Ciência e Literatura. Por isso, meus queridos adversários, não me temam depois de morto. Asseguro: não lhes aparecerei, nem de noite, nem de dia, como falam os homens gramaticalmente despreocupados.

Miguel Gurgel do Amaral, católico praticante e homem de bem, nutria por você uma grande amizade. Dizia ter esperança de ainda vê-lo na Igreja. Presenciei, certa feita, quando ele, com um olhar cheio de respeito e esperança, lhe disse estar confiante de que, um dia, haveria de vê-lo ajoelhado. Não se falando sério ou por simples gracejo, você lhe respondeu: "Só se for para dar um tiro, Miguel!". Pensa atualmente assim?

Sempre fui um homem que não muda facilmente de idéias. Ajoelhar não significa, absolutamente, não ser materialista. Por educação, não vou deixar de ajoelhar-me ou beijar anel de bispo. Honesto comigo mesmo, jamais quis aprender a rezar. Menino, meus pais - grandes católicos - tudo fizeram para que eu aprendesse o Padre-Nosso e a Ave-Maria. Também foram em vão os bolos de palmatória, para que eu dormisse de camisola. Em resposta à imposição, passei a vestir a roupa e os sapatos de domingo, para depois cair na rede. Até hoje, pela força, ninguém nada conseguiu de mim. E isso me dá prazer.

DESABAFO NACIONAL

Como vê a Política e os políticos brasileiros de hoje?

Sem Política Científica jamais poderá haver políticos autênticos. Acha que Tancredo, Maluf, Geisel, Figueiredo, Ulysses e Montoro podem ser chamados de políticos? Ocorre no Brasil porque, neste País, os mentirosos sempre ficaram fora da cadeia.

Social e politicamente, qual é o regime com que você sempre sonhou?

Antes de tudo, troquemos o "qual é" pelo "qual foi". Os que têm acompanhado a minha modesta, porém inquieta e autêntica vida política, sabem que eu nasci para o marxismo em 1928. Mas a ortodoxia soviética me espantou. Aliás, não existe razão para essa ortodoxia, já que na Rússia jamais se implantou o socialismo, caminho certo e reto para o comunismo. Na Rússia, o que se implantou, com em todos os seus satélites, foi o mais puro capitalismo de Estado, que eu denunciei, corajosamente, há 30 anos atrás. Você foi tocar no assunto, com ótima intenção. Agora, o jeito é agüentar. Não existem povos e países semelhantes entre si. Logo, não se pode implantar um mesmo regime político nesses países e para esses povos, sem antes descer-se ao estudo de geografia, história, costumes, religião, organização social no passado e no presente. Ora, os soviéticos ignoraram tudo isso na inauguração do socialismo, com rota para o comunismo. Daí a pluralidade desse comunismo: russo, chinês, cubano, albanês etc. Dito isso, vale a pena lembrar: sem a esperada e devida ressonância, quase ninguém soube, no Brasil, que a China trocou, há poucos dias, o marxismo pelo capitalismo de estado, pendendo para aceitar a empresa privada, apenas com esta diferença em relação aos países capitalistas: entendimento constante entre empregadores e empregados. Um dos dirigentes chineses chegou mesmo a proclamar, mais ou menos com estas palavras: "Se Marx e Lenine voltassem, hoje, ao mundo, não teriam as mesmas idéias". Quanto ao socialismo de Tito, diferente dos demais, trata-se apenas de um caso, sob certo aspecto, antropogeográfico. Falta-me espaço para explicá-lo.

Hoje, com essa vivência de mais de 80 anos, em que você mais acredita: na Revolução ou na Evolução?

Sou pela Revolução, isto é, pelo salto, mas sem derramamento de sangue. Bastaria um estudo do país e do povo a que e a quem se destinasse a Revolução. Uma catequese inteligente, sem opressão e sem ódio - embora em mais longo prazo - alcançaria o êxito desejado.

 Como viu o delírio popular pela vitória do candidato da Aliança Democrática?

 O povo - que durante quase 21 anos não se insurgiu contra a ditadura militar - o povo, contudo, soube ir à praça pública, às ruas, para comemorar a queda aparente dessa ditadura. Mais: para o Exterior, e também para muitos brasileiros, a imensa festa popular valeu, naturalmente, como eleição direta de Tancredo, agora Tancredo de Almeida Neves, depois de eleito. A primeira mudança? Essa festa brasileira, sinceramente, pareceu-me, mais do que tudo, uma fuga de menos de 24 horas às aflições, já bem antigas, geradas pelo crescente e asfixiante custo de vida. Foi, sem dúvida alguma, o desabafo da falta de dinheiro. Desabafo nacional.

A reedição completa, com acréscimos e introdução de Maria Tereza Ayres, está disponível no endereço eletrônico: http://www.opovo.com.br/app/acervo/entrevistas/2012/10/05/noticiasentrevistas,2928075/jader-de-carvalho.shtml

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Jáder de Carvalho: "Um poéta dynamico"

A segunda edição de Maracajá traz para nós, jaderianos convictos, dois grandes regalos.
O primeiro, uma poesia de Fernando Ricardo dedicada ao nosso escritor - uma demonstração de admiração ao nosso poeta - e o segundo, a revelação de uma outra temática presente na obra de Jáder de Carvalho.





                    Festa na fazenda

                                         A Jader de Carvalho

<< Ê  bambú, ê bambá
Vae ver a espingarda
Pra matar o mangagá...

E a festa ronca na fazenda...

Rola no ar o fartum dos seios bronzeados,
Dos seios exhuberantes,
Das caboclas suadas...

Ati-chim!... ati-chim!...

Lá fora os pyrillampos,                     
Quaes minusculos aerolithos, 
Fazem a ronda luminosa
Nas moutas de mofumbos...
                                                                     
E na porta da casa da fazenda,
Um poéta dynamico,
Um poéta modernista,
Diz que naquelas caboclas 
Está a promessa de uma raça nova...

<< Ê bambú, ê bambá
Quem é que suporta o cheiro
Do besouro mangangá?...>>

Fernando Ricardo.


A homenagem nos diz muito mais do que somente a admiração que nosso escritor suscita em um de seus colegas, nos apresenta uma outra temática recorrente na poesia jaderiana. Dinâmico não somente em relação a todas as atividades que exerceu (poeta, jornalista, romancista, professor), Jáder de Carvalho expõe em sua obra uma dinamicidade de temas que nos permite classificá-lo como um poeta completo. Ao lado de sua crítica ferrenha à política, de seu saudosismo, de sua poesia engajadamente social, de seu telurismo, há também espaço para uma poesia cantada para as musas, em uma exaltação à mulher sertaneja: uma mulher ao mesmo tempo sensual e pura. 


O homem que despe as mulheres...

   
Eu não gosto de mulher núa
Isto é:
Eu não gosto dessas meninas que se despem com as proprias mãos,
Para o goso efêmero dos passantes.

Eu gosto de mulher
Quando eu mesmo lhe arranco até a camisa, com o cheiro das pomas invioladas.

Si eu mandasse no Brasil,
As mulheres andariam vestidas
Para que todos os homens que pensam como eu
Lhes despissem as roupas e fizessem florescer, num beijo,
As rosas que os romanticos tiram ás escondidas!

Morenas do Brasil!
Morenas do Ceará!
Escondam os seios! Esperem pelo descobridor dessa terra jovem!
Não seria tão lindo si vocês
-s-e-m-p-r-e-!-
Nos dessem a sensação de descoberta?

Jader de Carvalho.



Nos dois poemas de Jáder de Carvalho presentes na segunda edição do Maracajá, somos apresentados à temática do feminino em seus primeiros escritos. O primeiro desses poemas, "Na praia natal ficou a palmeira...", já foi tema de nossa última postagem (confira em http://sertaopoesia.blogspot.com.br/2013/02/jader-canta-as-mulheres-da-literatura.html) e mostrou Jáder enaltecendo Iracema, uma das grandes personagens femininas da literatura cearense. 
Neste segundo poema,  vemos o poeta cantando as suas "morenas do Ceará" e evocando sensualidade. No entanto, ao lado de todo o tom lascivo e das imagens metafóricas presentes nessa poesia, o poeta deseja que as mulheres sejam mais recatadas e passivas diante do homem "descobridor dessa terra jovem". 
A temática do feminino, mostrada aqui ainda nos primeiros textos de nosso escritor, será recorrente ao longo de sua trajetória poética, seja em um tom mais sensual ou mais social. O que fica para nós, leitores, é mais uma faceta de Jáder de Carvalho a ser apreciada. 








domingo, 10 de fevereiro de 2013

Jáder canta as mulheres da literatura

Hoje, apresentamos um poema que traz mais um tema muito presente na obra de Jáder de Carvalho: a mulher. Ao lado do enfoque político, da exaltação de sua terra e dos caminhos percorridos pela memória, encontramos também as canções que o escritor dedicou às mulheres que habitaram sua vida e sua imaginação. No texto a seguir, publicado na segunda edição do suplemento Maracajá, Jáder canta uma mulher de nossa terra, a Iracema de José de Alencar.



Na praia natal ficou a palmeira...


Bila Ortiz , você teve o Alvaro Moreira para dizer que o
seu corpo é como um campo claro:
o pampa onde, sonhando, o gaucho erra ha tres seculos
com a bandeira da patria desfraldada na mão!

Mas você, Maria Nazareth,
Você apenas mereceu a estrophe incolor de um poeta do sul:
Estrophe em que os seus cabellos de sol
E os seus olhos de azul verdoengo
São reminiscencias de algum avô hollandez...

Eu penso, porem – e quem sabe si não estou pensando direito? –
Que Maria Nazareth não é mais do que Iracema saudosa
Disfarçada em mulher branca...

Martim não partiu da Barra do Ceará
No barco aventureiro que nunca mais voltou?

Ah! Você traz nos olhos, Maria,
O retrato do mar onde elle desapareceu!
Nos cabellos,
O sol que vestia de perolas o corpo cheiroso da virgem
Quando ella sahia do banho na água azul da Porangaba!

Você, que não é neta de flamengo,
Você ouviu no sangue o soluço da filha de Araken
E, por isso, fantasiou-se de Cecy,
Para não ser reconhecida na taba dos guerreiros brancos...

Maria Nazareth...
Lembre-se de que na praia natal, ficou a palmeira
E, na fronde da palmeira, a jandaia chamando:

Iracema! Iracema!

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A morte do soneto: o modernismo de Cipó de Fogo


Ao lado de Maracajá, suplemento literário que tem motivado nossas últimas publicações, Cipó de Fogo foi um periódico próprio da produção modernista das nossas letras. De vida breve (seu único exemplar circulou em 27 de dezembro 1931), a folha era dirigida por João Jacques e Mário Sobreira de Andrade. Propondo a circulação da poesia, do romance e do teatro moderno – especialmente na tentativa de consolidar a obra literária do modernismo cearense –, o breve programa do movimento, redigido por Mário, indica a necessidade de “crear uma alma brasileira, bem brasileira, contra a esterilidade dolorosa dos romanticos". Almejava-se, antes de tudo, não o “cabeçalho de uma revista”, mas um movimento. E alertava-se: “não haverá sonetistas”.

No expediente do jornaleto, consta a colaboração de “todos os modernistas do Ceará, sem exceção. E alguns de outros Estados.”. Jáder de Carvalho assina “Desafio”, poema de Terra de ninguém. Em espaço dedicado às produções do “pessoal do ‘Cipó de Fôgo’”, pequenas notícias revelam as novidades literárias dos escritores da época. Surgem, então, os nomes de Rachel de Queiroz, Sidnei Neto, Heitor Marçal, Mário de Andrade (do norte) e Jáder de Carvalho. Aqui um detalhe nos desperta a atenção: a menção a um livro que Jáder estaria escrevendo – Plebe –, que até hoje desconhece publicação ou adormece em uma gaveta antiga da casa da Rua Agapito dos Santos, 389.

Em visita à casa do escritor, o grupo Sertão-poesia teve conhecimento da existência de originais que resistiram à força do tempo. (Resistir, verbo que bem descreve a figura de Jáder.) Plebe estará entre eles? Não sabemos. A lembrança de Jáder, contudo, permanece escrita em sua obra e pende como uma fotografia na parede da nossa memória.  

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Espírito MARACAJÁ


Falar de Literatura ou mesmo dos tais movimentos literários parece uma atividade incompleta. Falta sempre uma parte do texto, a qual só poderá ser preenchida pelo ato de sentir o texto literário.
Alguns leitores entenderão bem o que é isso.
Desta forma, certo é que nenhuma descrição de outrem alcançaria a sensação do mergulho na escrita daqueles que foram os modernistas cearenses. No suplemento Maracajá (assunto de nossas duas últimas postagens), ao lado de Jáder de Carvalho encontramos compilados grandes nomes dos literatos dessa época. Hoje, concomitantemente, abrimos espaço para estes outros escritores e, nesses outros escritores, o espírito literário no qual Jáder de Cravalho deixava fluir sua escrita.
Iniciamos com Tocando na mesma inúbia de Paulo Sarasate, publicado na segunda edição do MARACAJÁ:

Você da <<Antropofagia>>, não adivinham como a gente está satisfeita. É assim mesmo que nós queremos. E é assim que a coisa tem de sahir. O sul chamando o norte. E o norte chamando o sul. Convidando-o para a luta. Assanhando as energias moças do lado de cá e de lá.
Movimento assim é que é. Esforços conjugados. União das duas bandas. Com o oéste tambem. Tudo gritando brasilidade. Tocando na mesma inubia. Comendo na mesma cuia. Brasileiramente. Antropofagicamente.
[...] 

De Rachel de Queiroz, extraímos esse trecho de Se eu fosse escrever o meu manifesto artístico, texto que finda a primeira edição do suplemento :

[...]
Além do que, só comprehendo e admiro uma manifestação artística quando é expontanea e sincera.
E, sinceramente, expontaneamente, meu coração só pode sentir e cantar o que sente e canta minha raça.
A interpretação de sentimentos extranhos, de belezas extranhas, feita por informação ou intuição é forçosamente convencional, falsa oi impessoal.
Eis porque sou nacionalista, eis porque dentro de meu nacionalismo inda me estreito mais ao circulo de meu regionalismo.
É que sinto que quanto mais proxima e familiar a paysagem, quanto mais intimo o motivo de inspiração, quanto mais integrado o artista com o modelo, mais fiel, mais expontanea e sincera será sua interpretação.
Eis porque eu canto o sertão, o sol, o Orós, as carnahubas, o algodão, os seringueiros, os jagunços, os cantadores e os vaqueiros, a caatinga, a Amazonia, a praça do Ferreira e o Cariry; eis porque canto o presente tumultuoso de minha terra e o seu passado tão curto, tão claro, tão cheio de expansão e vitalidade que é quasi um outro presente.

 Bem características do espírito modernista, separamos estas notas que aparecem tanto na primeira como na segunda edição do suplemento.

O primeiro numero de <<Maracajá>> foi espalhado por todo o globo e até por fora do referido esferoide.
A esta hora qualquer habitante de Marte já estará fazendo antropofagia.
Vocês lá do sul que escreveram sobre o gato selvagem do nordeste toquem nos ossos.
Isso!
Nós estamos ligados por um sentimento unico – o da voracidade.
Juntemo-nos para comer tudo o que deva ser comido no Brasil.

A.              G.
 
 Os compositores de <<Maracajá>> acham bom dizer...

Vocês do sul desculpem os typographos do Ceará. Elles não pderam fazer uma revista melhor.
Si tivessem mais recurso material, mostrariam como o cearense sabe tirar dois couros de um bode só. 

Por fim, alguns anúncios (ou annuncios, como era grafado no suplemento):


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Olhem vocês do sul: o Ceará exporta couros de bovinos, caprideos e lanígeros. E tambem de obras e lagartos. E algodão. Se vocês quiserem partidas desses produtos, dirijam-se á EXPORTADORA CEARENSE LTD, uma das melhores firmas exportadoras do Ceará.

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Olhem vocês do sul: vocês devem dormir em rêde como nós dormimos. Os tupiniquins nunca viram camas. Digam aos importadores dahi que peçam dez mil redes á Usina Gurgel (Siqueira & Gurgel Ltd) Fortaleza.

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O verdadeiro antropofago bebe agua mineral Lambary. E quem não quiser ser comido pelas doenças internas (que são aquellas que devoram o sujeito de dentro para fora), deve igualmente beber agua mineral LAMBARY, de que o Benjamin Torres é agente na Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção, do Siará.